A hipocrisia da UE e do directório das grandes potências, o negócio da “ajuda” à Grécia, o regresso da Questão Social, a manifestação da CGTP, o projecto europeu e como tudo isto está ligado nas nossas vidas

02-06-2010 14:53

A hipocrisia e as contradições entre discursos e intenções proclamadas para show-off e a efectiva prática política do directório franco-alemão, apoiado por uma subserviente Comissão Europeia, no enfrentamento da actual crise e na atitude face aos problemas da Grécia, estão bem ilustrados e chocantemente documentados na intervenção no Parlamento Europeu do deputado dos Verdes, Daniel Cohn-Bendit, que aqui reproduzimos e que foi já também divulgada pelo excelente blogue Ladrões de Bicicletas.

A sua denúncia é mais uma demonstração do naufrágio em que a União Europeia está em vias de mergulhar, podendo conduzir a uma séria deriva nacionalista e populista de direita nos países-membros, um forte recuo da frágil coesão Europeia, a submissão à ditadura do capital e dos mercados financeiros, o golpear do seu grande sinal distintivo e avanço civilizacional (o Estado Social ou Estado-Providência) comparativamente com os outros grandes espaços económicos e políticos, desenvolvidos ou emergentes.

A tragédia e a farsa

Lembremo-nos do que sucedeu na Europa nos anos 20 e 30 do século passado, durante a grande recessão económica, as hesitações e recuos das democracias liberais face à ascensão e domínio, na maioria dos países, de soluções autoritárias, fascistas e nacionalistas com políticas belicistas, a redução do comércio internacional e o crescimento do proteccionismo nacional, o enfraquecimento das instituições internacionais e a criação do caldo de cultura agressivo que conduziu à 2ª Guerra Mundial, tendo como principal e mais sacrificado teatro a Europa, como já sucedera com a primeira grande guerra desse século.

Dizia Hegel que os grandes acontecimentos históricos tendem a acontecer sempre duas vezes e Marx, a propósito, numa sua obra (o 18 Brumário), corrigia essa afirmação, dizendo que sucedem primeiro como tragédia e depois como farsa. Como também analisa Slavoj Zizek numa sua obra recente (First As Tragedy, Then As Farce), a aplicação desta ideia à primeira década do novo século pode ser expressa em dois acontecimentos: a tragédia do 11 de Setembro de 2001, com as consequências e abalos políticos mundiais que se lhe seguiram, e a crise económica e financeira mundial do final da década, que continuamos a viver.

Como podemos interpretar senão como uma farsa trágica a incapacidade, incompetência, desorientação e pequenez das actuais lideranças políticas europeias (de que temos por cá um triste, errático e servil exemplo caseiro), a reacção tardia, titubeante e desunida da UE e dos maiores estados-membros à investida especulativa, que não pára, concentrando o essencial das medidas e respostas em cedências sucessivas à pressão das agências de rating combinadas com os investidores especulativos?

Assim vão fortalecendo a dominação dos mercados financeiros e a consolidação do poder e hegemonia duma direita neoliberal que quer aproveitar a situação para alargar o domínio do mercado a todas as esferas da vida, privatizar o que falta, dar novos golpes na coesão social, agravar mais a precariedade do trabalho e as desigualdades e promover o retorno de um nacionalismo económico, a começar pelas grandes potências europeias,

O naufrágio em curso do projecto da União Europeia

Estilhaçam-se deste modo as declarações grandiloquentes sobre o Tratado de Lisboa. Convertem-se em figuras apagadas de opereta os novos cargos institucionais europeus criados por este tratado como exemplo de reforço da cooperação política. Emerge uma pulsão nacionalista e populista alemã sem escrúpulo em sacrificar os países europeus aos interesses dos seus bancos, sem cuidar do ricochete que também sofrerá. O governo britânico (sempre com um pé dentro e outro fora da Europa) vai aproveitando para se assumir como força de bloqueio a tudo o que limite a liberdade do capital financeiro e alargue direitos sociais. Consente-se a entrada e intervenção do FMI no espaço da UE, esse famigerado organismo cujas receitas conduziram à recessão em tantos países e de que os portugueses guardam má memória da sua intervenção em 1983, lembram-se?

Mesmo a tímida intervenção decidida pela UE para apoiar a gestão da dívida dos estados-membros, foi realizada de modo vergonhoso, irracional e para benefício dos grandes bancos: estes vão financiar-se em nome da crise, ao BCE, a uma taxa de 1%, enquanto o BCE está proibido de adquirir directamente os títulos de dívida pública, à mesma taxa, para financiar os estados-membros, apenas podendo comprá-los no chamado mercado secundário, ou seja, adquirindo-os aos bancos, a juros muito mais elevados.

Como podem pois os mercados financeiros deixar de continuar a pressionar os governos e os países para prosseguirem políticas fortes contra os fracos e fracas contra os poderosos (de que o Governo de Sócrates e o renovado bloco central PS-PSD são alunos exemplares), para prosseguirem a farta acumulação de mais-valias, numa espiral descontrolada de “remédios” que correm o risco de matar muitos pacientes? Eis a famosa (ir)racionalidade do mercado e dos seus agentes, em todo o seu esplendor!

E as poucas medidas faladas na UE para reforçar a solidariedade e coordenação política e económica europeia face à crise, marcam entretanto passo e arrastam-se penosamente nas cimeiras, enquanto à boleia avançam tentativas de um diktat dos poderosos destruidor dum verdadeiro e solidário projecto de união política, de que é exemplo a espantosa proposta alemã de controlo dos orçamentos dos estados-membros antes sequer de os parlamentos nacionais os apreciarem! Ou, dizendo mais exactamente o que lhes vai na alma – terem o direito de exame prévio e censura sobre o orçamento português ou grego, porque ninguém acreditaria na anedota de ver o parlamento português a vetar o orçamento alemão…

Como refere Stiglitz numa recente entrevista ao jornal Le Monde (ver aqui), a União Europeia caminha para o desastre com a política e as receitas de austeridade em curso, em vez de optar por uma política de coesão, de solidariedade e de reforço da sua união política.

Por um novo rumo democrático para relançar a UE e o projecto europeu

Defender o futuro democrático da União Europeia e prevenir novas ameaças à paz na região exigem uma mudança do seu rumo, através da adopção de medidas que têm vindo a ser defendidas e propostas por economistas adeptos de um pensamento crítico, pela ATTAC (ver também aqui a declaração comum das ATTAC europeias, incluindo a ATTAC Portugal) e por forças políticas à esquerda:

- Uma nova orientação para o BCE (não assumindo apenas como função o obsessivo controlo da inflação, mas com a função de promover o emprego e a coesão social e económica),

- A profunda revisão do recessivo Pacto de Estabilidade e Crescimento, que tem sido parte do problema e não parte da solução das economias europeias;

- Um orçamento europeu suficiente e capaz de sustentar as políticas de solidariedade e coesão à escala da UE;

- A instituição de títulos de dívida pública europeia que permitam apoiar as economias mais frágeis sem a sujeição ruinosa actual aos apetites dos mercados financeiros;

-A constituição de uma agência de notação financeira (rating) pública europeia, que enfrente o jogo perigoso das agências de rating anglo-saxónicas (financiadas pelos mesmos bancos e fundos de investimento que avaliam) que, sem transparência ou controlo públicos, põem em causa as economias de países ao serviço da especulação e dos mercados financeiros;

- A proibição no espaço europeu dos paraísos fiscais e dos produtos financeiros tóxicos, a taxação das transacções financeiras e a sujeição de todo o sistema financeiro, e não apenas dos bancos, a um controlo político transparente e rigoroso que defenda o interesse público;

- O desenvolvimento e qualificação do Estado social e dos serviços públicos, racionalizando-os e assegurando a sua sustentabilidade, como um sinal distintivo e uma referência positiva mundial das sociedades europeias;

- Uma política económica que assegure a caminhada efectiva para a coesão e a redução das desigualdades no espaço europeu, que assegure a sua protecção contra o dumping social realizado pelas economias que não respeitam direitos laborais e sociais mínimos e que recuse o caminho da degradação social em nome da competitividade com as economias emergentes, para benefício das transnacionais europeias que para aí deslocalizam a sua produção.

-A afirmação da UE como um bloco político, económico e social de progresso que pese positivamente na balança mundial de forças para uma resposta positiva aos gravíssimos desafios relativos à paz, ao ambiente e à pobreza que ameaçam a humanidade.

Se o proteccionismo económico constitui um recuo à escala nacional, já medidas de protecção económica, controlo e subordinação política dos mercados financeiros e dos movimentos de capitais à escala da União Europeia constituem, como tem sido sustentado por economistas de pensamento crítico e à esquerda, um caminho alternativo para o combate à recessão e à crise, dada a inexistência de instituições políticas capazes de regular e controlar os mercados e o capital financeiro à escala mundial.

A Questão Social permanece central na Europa

Como lucidamente alertou o historiador Tony Judt num artigo notável sobre “O Renascimento da Questão Social”, as reformas e compromissos sociais do pós-guerra nas democracias liberais foram em grande medida uma resposta ao receio do retorno do desespero e descontentamento sociais que se julgava estarem na raiz das escolhas políticas que então conduziram à guerra. Por isso, a Questão Social, se não for tratada, não desaparece, buscará antes saídas mais radicais.

O mesmo autor, num livro que acaba de publicar (Ill Fares the Land), observa que o período de cerca de três décadas passadas até meados dos anos 70 constituiu um período de redução das desigualdades, mas que desde então até à actualidade (com as políticas iniciadas por Reagan e Thatcher e sob a inspiração do utilitarismo individualista e do capitalismo libertário de Hayek), as desigualdades voltaram a crescer. O CEO da General Motors recebia em 1968 o equivalente a 66 vezes a remuneração média de um trabalhador da empresa. Hoje, o CEO da cadeia de distribuição Wal-Mart recebe 900 vezes a remuneração média dos seus trabalhadores. Por cá, basta consultar os relatórios da CMVM (ver aqui) sobre as remunerações dos administradores das empresas portuguesas cotadas em bolsa para perceber que a situação não é diferente nem melhor

Judt, um insuspeito e lúcido social-democrata, alerta-nos que o maior perigo da submissão actual ao mercado e do recuo do Estado na sua dimensão social, reside no crescimento das desigualdades e de estas corroerem por dentro as sociedades. Propõe por isso na sua obra, que constitui talvez uma espécie de testamento político (está gravemente doente), ele que é um dos maiores estudiosos e historiadores do século XX e das suas lições, que a esquerda recomece de novo, que os cidadãos ousem criticar quem governa, que se assuma o conflito social e a Questão Social como questão permanente das sociedades democráticas, que se recupere a centralidade do Estado ao serviço da redução das desigualdades sociais e como um renovado Estado-Providência.

E à esquerda, que fazer?

Esta visão de Judt está nos antípodas das “terceiras vias” com que os partidos da Internacional Socialista se foram rendendo na Europa à realização de políticas de direita, pressionados pela onda neoliberal e pelas teorias do capitalismo libertário. Mas é um contributo inspirador para os que não desistem de agregar forças à esquerda, e que porfiam no combate para subordinar a economia à política, que devolva o sentido moral à economia em vez da sua deificação como ciência exacta que não é, que tenha como prioridade as pessoas e não os mercados, que assegure o primado do interesse público e dos serviços públicos na realização do bem comum.

O desafio que está colocado às esquerdas europeias é se são capazes de convergir e erguer uma proposta renovada e adequada aos desafios do nosso tempo, mobilizadora e alternativa à escala europeia. Solidária com o mundo do trabalho e com o movimento social de protesto que vai crescer. Recusando ceder à deriva nacionalista. Com um projecto europeu avançado, social, pacífico e progressivo. Aprendendo as lições da história e convergindo no combate por uma União Europeia mais democrática, mais coesa e mais avançada, que sustente a moeda única numa coordenação económica e política reforçadas, sem a qual o euro revela todas as suas fragilidades e instabilidade e a propagandeada unidade europeia se rompe ao primeiro embate crítico, incapaz e sem poder para gerir os conflitos de interesses.

Ou, se persistir a desorientação programática, o acantonamento nacional e a divisão reinante, se o descontentamento social em crescendo vai ser sobretudo capitalizado pela direita xenófoba, demagógica e populista, deixando o movimento social sem uma alternativa política de progresso.

É tempo de aprofundar o debate e reforçar o combate, em Portugal e na União europeia, por um Contrato Social renovado que impeça o retrocesso civilizacional e social que o neoliberalismo, de mãos dadas com o grande capital financeiro, à boleia desta crise, querem instalar no espaço europeu.

Estes, quais aprendizes de feiticeiro, poderão desencadear um retrocesso civilizacional, político e social e conflitos de interesses de graves consequências sociais e políticas, ao arrepio das lições da história europeia, das suas revoluções progressivas e do seu movimento operário, que moldaram os avanços democráticos e as conquistas sociais hoje postos em questão.

A poderosa manifestação nacional da CGTP no dia 29 de Maio, as grandes mobilizações sociais em curso em Espanha, na França, na Roménia, na Itália ou na Grécia, demonstram a existência de forças, no mundo do trabalho e da cidadania, capazes de resistir à ditadura dos mercados e representam para as esquerdas o desafio de lhes darem projecção, representação política eficaz e propostas programáticas alternativas, credíveis e viáveis.

Interrogações (e não conclusões) finais

Estão então os sindicatos e os sindicalistas disponíveis para responder positivamente ao apelo de Carvalho da Silva na manifestação da CGTP (ver aqui a sua intervenção) para a unidade de acção,com efectiva autonomia e sem dependências do poder e de estratégias partidárias, para assumirem uma frente comum de valorização dos interesses do mundo do trabalho como componente central duma outra política que aposte primeiro nas pessoas, nos direitos e na economia real e capaz de obrigar Governo e patronato a uma negociação colectiva e uma concertação social que não sejam apenas fachada, mas antes componentes efectivas duma democracia de base social mais ampla e robusta?

Está a UGT disponível para corresponder ao apelo do seu fundador Torres Couto, em entrevista televisiva no dia da manifestação, para assumir a necessidade da unidade e do protesto dos trabalhadores, rompendo com o seu comprometimento e dependência das políticas do bloco central, chocantemente expresso nas recentes declarações de João Proença?

Há disposição e vontade à esquerda, em Portugal, para agregar forças para esta empreitada e romper com a inevitabilidade e a fatalidade das receitas que há 30 anos a maioria dos economistas e analistas que circulam entre o poder político, as assessorias, administrações e canais de TV nos impingem, sempre em nome do superior interesse nacional, de facto para benefício duma minoria no país mais desigual da União Europeia?

Henrique Sousa
Membro da direcção da ATTAC Portugal

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