As Parcerias Público-Privadas no sector da Saúde - Bruno Maia
19-01-2012 20:38Análise de Bruno Maia, médico, sobre as parcerias público-privadas no sector da saúde, efectuada para a Iniciativa para uma Auditoria Cidadã à Dívida Pública e transcrita para o site da ATTAC Portugal.
Dos 50 mil milhões de euros de gastos plurianuais previstos com as PPP’s em Portugal, 8 mil milhões pertencem ao sector da saúde. Só em 2011 foram gastos 228 milhões de euros, mais 32,5% do que em 2010. Os gastos públicos vão aumentar significativamente nos próximos 10 anos e só terminarão no ano de 2042. A distribuição do risco entre o Estado e o consórcio privado é extenso e complexo e podem-se concluir dois factos imediatos: em primeiro lugar o parceiro privado não assume NENHUM risco isoladamente, sendo sempre partilhado com o Estado; em segundo lugar, os riscos com maior impacto e probabilidade de ocorrência são assumidos inteiramente pelo Estado!! Os riscos financeiros são assumidos na totalidade pelo Estado. Em termos práticos, a entidade privada fica salvaguardada das oscilações da economia real e mantém a sua renda anual, proveniente dos dinheiros públicos, blindada às variações que se poderão registar nos mercados nos próximos anos.
As parcerias público-privadas na saúde são um negócio ruinoso para o Estado e uma renda fixa milionária para os consórcios privados. Elas são responsáveis por 30 anos de dinheiros públicos entregues aos grupos privados. As próximas gerações estão condenadas a pagar mais de 8 mil milhões de euros, na melhor das estimativas.
- Introdução
As actuais parcerias público-privadas (PPP) na área da saúde foram inicialmente anunciadas em 2001, num projecto que previa a construção de 10 novos hospitais, alguns de substituição, outros a construir de raiz. Numa primeira vaga seriam construídos o Hospital de Cascais, Braga, Loures, Vila Franca de Xira e posteriormente os Hospitais de Lisboa Oriental, Faro, Seixal, Évora, Vila Nova de Gaia e Povos do Varzim/Vila do Conde. O planeamento incluía a atribuição de concessões a grupos privados para a construção e manutenção dos novos edifícios e para a gestão clínica das novas unidades, dividas em 2 concessões distintas, em alguns casos à mesma entidade privada.
Mas nesta matéria o Estado tinha já uma experiência prévia de gestão privada em hospitais públicos. Em 1996 a gestão clínica do Hospital Amadora-Sintra era entregue ao Grupo Mello Saúde. Essa experiência viria a terminar em 2008 pela mão do então primeiro-ministro José Sócrates. Na base desta decisão estavam divergências entre a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT) e o referido grupo privado no acerto de contas, conferência de facturas e apuramento dos encargos ocorridos, nomeadamente entre os anos de 2002 e 2006. Nestas divergências incluíam-se acusações da ARSLVT àquela entidade gestora de facturar e exigir ao Estado o pagamento de Exames Complementares de Diagnóstico e receitas que nunca teriam existido. O processo chegou a ser auditado pelo Tribunal de Contas e o Grupo Mello multado, tendo depois interposto recurso. Curiosamente é o mesmo primeiro-ministro que termina o contrato de concessão no Hospital Amadora-Sintra, que atribui a gestão do novo Hospital de Braga e de Vila Franca de Xira exactamente ao mesmo grupo privado.
Segundo o Tribunal de Contas, os encargos plurianuais das PPP, em 2009, ascendiam aos 50 mil milhões de euros. Ainda assim ficavam de fora desta previsão muitos dos encargos públicos que são assumidos como objecto de contabilidade em diferentes agrupamentos de despesa e também todos os agravamentos de despesa que advirão da renegociação de contractos que, até à data, aconteceu em praticamente todas as concessões.
Já em 2010 o encargo daquele ano com as PPP era de 1.127,7 milhões de euros, um acréscimo de 19% face ao previsto inicialmente. Estes aumentos nos gastos públicos com PPP’s têm sempre tendência a aumentar, não só pela sempre presente renegociação dos contactos mas também pela exigência de reequilíbrio financeiro. Sempre que o Estado procede a uma modificação unilateral no contracto (o que acontece com muita frequência, em virtude de os “negociadores” da Entidade Pública, aquando da assinatura do contracto, não terem previsto todas as condicionantes futuras), os parceiros privados exigem um processo de reequilíbrio financeiro para garantir a manutenção das condições de lucro inicialmente contratualizadas, que é assegurado com dinheiro público.
Para além disso o Estado tem assumido nos contractos de concessões riscos comerciais e financeiros, como suportar o aumento das taxas de juro, dos spreads ou dos honorários, risco elevado em tempos de crise, com o parceiro privado a ficar isento desses mesmos riscos. Paralelamente é o próprio banco financiador que exige ao Estado que assuma esses riscos sob pena de não conceder o crédito necessário.
Todos estes pressupostos aplicados a todas as PPP’s são válidos nas concessões feitas na área da saúde. Contudo, na saúde observou-se, nas últimas parcerias assinadas, a introdução do comparador público, também conhecido como CPC e que permite justificar a existência da concessão como sendo mais barata do que aquilo que seria o investimento directo do Estado na infra-estrutura. O problema deste comparador, para além do facto de só ter sido introduzido há bem pouco tempo nas PPP’s, é que ele está sujeito a manipulação por parte dos organismos avaliadores, como refere Carlos Moreno juiz jubilado do Tribunal de Contas. Ao mesmo tempo após a atribuição da concessão, as frequentes renegociações do contracto com o parceiro privado podem desvirtuar este mecanismo de controlo, uma vez que os custos podem subir, ultrapassando o valor de CPC inicial.
2. PPP’s na saúde
2.1.Dados gerais
Dos 50 mil milhões de euros de gastos plurianuais previstos com as PPP’s em Portugal, 8 mil milhões pertencem ao sector da saúde. Só neste ano de 2011 vão ser gastos 228 milhões de euros, mais 32,5% do que em 2010. Os gastos públicos vão aumentar significativamente nos próximos 10 anos e só terminarão no ano de 2042. A própria ACSS (Administração Central dos Serviços de Saúde) publicou no seu site um gráfico com a previsão desses gastos:
Estes valores não passam, contudo, de estimativas de custo baseadas no valor acordado nos contractos iniciais e ignoram os efeitos dos riscos assumidos pelo Estado, da renegociação dos contractos ou das exigências de reequilíbrio financeiro. Como exemplo, as duas PPP’s na saúde que estão já em marcha (Hospital de Cascais e Hospital de Braga) foram sujeitas a ajustamentos nos contractos no mesmo mês em que estes tinham sido assinados, que exigiram ao componente público gastos acrescidos que ascendiam, no caso do Hospital de Cascais, a 80 milhões de euros.
Estas estimativas são ainda insuficientes porque, tal como se referia na introdução, não estimam custos paralelos ou custos indirectos assumidos pela Entidade Pública e contabilizados no Orçamento de Estado ou na Conta Geral do Estado em parcelas distintas das PPP’s (pareceres e consultorias, por exemplo).
O quadro seguinte lista as estimativas de custos iniciais para as parcerias já em marcha na área da saúde.
Hospital |
Estimativa em milhões de euros |
Braga |
800 |
Cascais |
400 |
Loures |
594 |
Vila Franca de Xira |
434 |
Lisboa Oriental (Todos os Santos)* |
377 |
Algarve* |
250 |
* As concessões relativas ao Hospital Oriental de Lisboa e Algarve são concessões únicas de construção e manutenção do edifício não incluindo a gestão clínica daquelas unidades.
2.2. Gastos com pareceres e consultorias
A partir do anúncio das novas PPP’s em saúde em 2001, o governo da altura decidiu criar uma estrutura de missão “Parcerias em Saúde”, que seria a Entidade Pública responsável pelos concursos para a concessão e acompanhamento dos contractos assinados com os parceiros privados. Só nos anos de 2005/2006 foram gastos 858 mil euros em despesas com pessoal para essa estrutura. Não obstante a sua existência, o Estado contratou empresas privadas de consultoria e encomendou estudos e pareceres sobre as PPP’s na saúde, tendo gasto até à data 20 milhões de euros neste capítulo.
2.3. A partilha do risco
De acordo com a auditoria que o tribunal de contas realizou em 2009 às PPP’s, a distribuição do risco entre o Estado e o consórcio privado é extenso e complexo. Nos anexos deste artigo encontram-se definidos para as 4 PPP’s em curso na saúde o tipo de risco, a probabilidade de ocorrência, o impacto e quem detém esse risco. A fonte das tabelas é a própria ACSS. Pela sua análise podem-se concluir dois factos imediatos: em primeiro lugar o parceiro privado não assume NENHUM risco isoladamente, sendo sempre partilhado com o Estado, em muitos casos em percentagens muito desiguais com prejuízo para o Estado; em segundo lugar, os riscos com maior impacto e probabilidade de ocorrência são assumidos inteiramente pelo Estado!!
Os riscos financeiros, são os únicos descritos com probabilidade de ocorrência elevada (destacados a vermelho), prendem-se sobretudo com a inflação e a revisão dos preços e é assumido na totalidade pelo Estado. Em termos práticos, a entidade privada fica salvaguardada das oscilações da economia real e mantém a sua renda anual, proveniente dos dinheiros públicos, blindada às variações que se poderão registar nos mercados nos próximos anos.
2.4. A concorrência
Um dos graves prejuízos para o Estado têm sido, como já foi referido, a renegociação dos contractos das PPP’s. Ora se aquando de um concurso público, o consórcio privado o ganho com base num valor-oferta, renegociá-lo à posteriori é desvirtuar o concurso público prévio e é desrespeitar as regras de competitividade e transparência e constitui tratamento “especial” e favorecimento por parte do Estado ao consórcio ganhador. Quem perde é o próprio Estado porque assim deixa cair a oportunidade de baixar os preços de custo em matéria de concurso e igualdade concorrência. Tal situação foi o que sucedeu no Hospital de Cascais e no Hospital de Braga, conforme se descreve mais à frente.
2.5. Hospital de Braga
O novo Hospital de Braga, que iniciou o seu funcionamento este ano, é uma parceria entre o Estado e o Grupo Mello. A Escala Braga, empresa deste grupo privado, é a responsável pela construção e manutenção do novo edifício hospitalar e também pela gestão clínica da unidade durante os próximos 10 anos. No total previsto inicialmente o Estado gastará 794 milhões de euros e pagará juros de 12 a 15 por cento. O contracto implica o pagamento deste montante até 2039 e o estado assumirá vários tipos de risco da PPP, entre os quais o risco de inflação dos preços referência pagos por cada acto cuidador prestado e da sua revisão.
Para além da história passada deste grupo económico e das várias acusações que lhe foram feitas pela ARSLVT de manipulação de contas e fraude na gestão do Hospital Amadora-Sintra, o Grupo Mello, com pouco mais de um ano de presença em Braga foi já multado por duas vezes, a primeira no contexto de ocultação de informação ao Estado, no valor de 273 mil euros e a segunda vez por transferência indevida de doentes para hospitais do Porto, no valor de 545 mil euros.
2.6. Hospital de Cascais
O Hospital de Cascais foi a primeira PPP a funcionar na área da saúde. Foi inaugurado o ano passado e resulta de um contracto de concessão entre o Estado e o grupo Hospitais Privados de Portugal (HPP) da Caixa Geral de Depósitos. O contracto prevê, da parte do Estado, um investimento inicial de 73 milhões de euros referentes à construção que foi contratualizada com a empresa Teixeira Duarte.
Logo após a assinatura do contracto de concessão, este teve de ser imediatamente renegociado uma vez que a entidade privada recusou-se a arcar com as despesas relativas aos medicamentos dos tratamentos oncológicos. O Tribunal Constitucional chegou inclusive a chumbar este contracto, aprovando-o posteriormente após renegociado. Essa renegociação custou mais 21 milhões de euros ao Estado. O contracto está em vigor até 2038.
Desde a chegada da concessão que o número de camas nesta unidade de saúde foi cortado e encontra-se permanentemente em sobrelotação. Existem queixas em tribunal de vários dos profissionais de saúde de não pagamento de horas extra. Para além disso, a administração HPP fechou o laboratório de análises clínicas do hospital e realizou um outsourcing com o serviço de Patologia Clínica do Hospital dos Lusíadas, unidade privada gerida pelo mesmo grupo HPP, num claro e manifesto conflito de interesses. Este outsourcing implica que o Estado esteja a pagar ao grupo HPP no hospital de Cascais exames complementares que o grupo HPP do hospital de Cascais compra ao grupo HPP do hospital dos Lusíadas.
2.7. Restantes parcerias
O Hospital de Loures, que se espera abrir em Janeiro de 2012, é uma parceria do Estado com o grupo BES. A abertura do primeiro concurso foi anulada por irregularidades no processo. O contracto vigente durará até 2042. Em Vila Franca de Xira a concessão foi atribuída, mais uma vez, ao Grupo Mello Saúde, que já se encontra neste momento na gestão clínica daquela unidade e que construirá o novo edifício que custará 76 milhões de euros ao estado. Já o novo Hospital Oriental de Lisboa será uma PPP apenas para a sua construção, mantendo-se a sua gestão clínica na esfera do Estado. A empresa vencedora do consórcio é a Teixeira Duarte e o início da sua construção aguarda autorização governamental. Já o Hospital de Faro, também uma PPP apenas para a construção e manutenção do edifício, ainda não encontrou consórcio vencedor porque todas as propostas apresentadas são valores acima do comparador público.
2.8. O papel dos governantes
As PPP’s e todo o seu processo ao longo dos últimos 10 anos são uma evidência forte de corrupção, promiscuidade e conflitos de interesses entre o Estado e os grupos privados, com benefício para os últimos. São vários os concedentes públicos do passado que são hoje administradores de grupos privados. Em muitos casos é a mesma pessoa que atribui uma concessão a um grupo privado e que depois vai liderar essa concessão nessa entidade. Na saúde destacamos dois: Luís Filipe Pereira, foi sempre administrador do grupo Mello Saúde só o tendo interrompido durante 3 anos para ser ministro da saúde do governo de Durão Barroso, tendo sido nessa fase o responsável pelas PPP’s na área da saúde que mais tarde atribuíam ao grupo Mello dois hospitais públicos. Pedro Dias Alves, começou por ser administrador do Hospital Amadora-Sintra pelo Grupo Mello para depois ser o responsável público pela avaliação das propostas de PPP’s para o Hospital de Lisboa Oriental e Algarve. Actualmente é administrador dos HPP.
3. Conclusão
As parcerias público-privadas na saúde são um negócio ruinoso para o Estado e uma renda fixa milionária para os consórcios privados. Elas são responsáveis por 30 anos de dinheiros públicos entregues aos grupos privados, a risco quase zero, que comprometem orçamentos futuros e vinculam os próximos governos, até depois de 2040, a gastos anuais elevadíssimos. As próximas gerações estão condenadas a pagar mais de 8 mil milhões de euros, na melhor das estimativas
Elas são também exemplos de má gestão dos dinheiros públicos e de promiscuidade e corrupção entre sector público e sector privado. A assunção do risco financeiro pelo Estado assumirá proporções catastróficas à medida que os juros da dívida aumentam e o Estado Português não se consegue financiar.
Bruno Maia, médico
———
Voltar