Crash do Dexia: a caminho de um efeito dominó na UE? - Éric Toussaint
10-10-2011 00:45Neste início do mês de Outubro de 2011, a falência virtual do banco franco-belga Dexia é um sinal suplementar da amplitude da crise que leva os poderes públicos a se porem inteiramente ao serviço dos interesses privados, abusando das finanças públicas. Esta falência do Dexia mostra que o elo fraco da cadeia da crise da dívida é constituído pelos bancos privados, enquanto que os governantes e os média dominantes só falam de crise da dívida pública1.
Em Setembro de 2011, diante da amplitude das ameaças que pesam sobre o conjunto do sector financeiro privado, confrontado com os efeitos da sua política aventureira, os bancos centrais da Europa ocidental (Banco central europeu – BCE, Banco de Inglaterra e Banco da Suíça) e a Reserva Federal dos Estados Unidos tomaram uma medida de uma importância excepcional: Puseram à disposição dos bancos privados toda a liquidez necessária em dólares e em euros por um período superior a três meses, afim de permitir aos organismos financeiros enfrentarem as dificuldades do ano 2011. Isto mostra até que ponto os governantes e os grandes bancos centrais têm medo do que possa acontecer no último trimestre de 2011. Os bancos europeus que pediam dinheiro emprestado a curto prazo em dólares nos mercados monetários norte-americanos viram a torneira fechar-se. Foi preciso que os bancos centrais assumissem o comando sob pena de se assistir a um possível crash bancário de organismos como BNP Paribas, Dexia, Société générale, Crédit Agricole, Natixis, falando apenas de alguns bancos franceses e belgas. Este novo crash do Dexia2 mostra que esta medida não chega para resolver o problema, entendido erradamente como um simples problema de liquidez. Provavelmente, o Dexia é apenas a primeira pedra do dominó a cair neste quarto trimestre de 2011.
Os poderes públicos como o credor principal em primeiro e último recurso
Assiste-se uma vez mais a uma significativa prova: na UE, os bancos centrais dos países membros e o BCE não podem emprestar dinheiro aos poderes públicos que devem portanto financiar-se junto dos bancos e de outros investidores institucionais. Por conseguinte, é suposto que o sector privado seja capaz de se financiar por si só e sem apoio estatal às necessidades dos poderes públicos, das empresas e das famílias. Ora, eis que os bancos centrais, isto é os poderes públicos, aparecem cada vez mais claramente como o credor principal em primeiro e último recurso. Os bancos privados europeus financiam-se de quatro maneiras:
1. Pedem empréstimos aos outros bancos no mercado inter-bancário;
2. Pedem empréstimos às famílias que depositam dinheiro no banco – o seu salário no início do mês e a sua poupança;
3. Pedem empréstimos às empresas não financeiras;
4. Pedem empréstimos em dólares nos mercados monetários dos Estados Unidos (que pedem emprestado à Reserva Federal);
5. Pedem empréstimos aos bancos centrais.
Ora, o mercado inter-bancário restringiu-se significativamente porque os bancos duvidam uns dos outros pois têm activos tóxicos nos seus balancetes; os depósitos das famílias, em período de crise, não aumentam e, mais grave, se as famílias perderem a confiança em um ou vários bancos podem correr para os balcões para levantar o seu dinheiro e tentar pô-lo em segurança (o que põe em pânico os banqueiros, os bancos centrais e os governos, alguns dos quais, como o de França, limitaram o levantamento de fundos pelos particulares); empresas não financeiras retiram os seus fundos dos bancos (em Setembro, o Financial Times revelou que a transnacional alemã Siemens retirou 500 milhões de euros do banco francês Société Générale para os depositar no BCE)3; os mercados monetários fecharam significativamente a torneira do crédito a partir de Junho de 2011. Em resumo, os bancos privados financiam-se essencialmente junto dos bancos centrais.
Compras massivas no mercado secundário da dívida pelo BCE
E isto não é tudo. O BCE prosseguiu a sua política de compra massiva, no mercado secundário da dívida, de títulos italianos, espanhóis, gregos, portugueses e irlandeses. Entre 8 de Agosto e 12 de Setembro de 2011, ele comprou cerca de 77 mil milhões de euros, dos quais 40 mil milhões de títulos italianos4.
O objectivo é duplo:
1. aliviar os bancos privados da Europa ocidental, que até 2010 tinham comprado em força títulos da dívida dos países considerados hoje de alto risco;
2. tentar evitar que a Itália e a Espanha não fiquem na situação da Grécia, da Irlanda e de Portugal que, por causa da grande subida das taxas de juro, já não podem pedir empréstimos nos mercados, para além de um ano. As necessidades de empréstimos da Itália, até Julho de 2012, elevam-se a 300 mil milhões de dólares e as da Espanha a 80 mil milhões.
Se a Itália e a Espanha tivessem de renunciar a pedir empréstimos nos mercados financeiros por causa das taxas de juro muito elevadas, o Fundo europeu de estabilização financeira (FEEF) não disporia de meios suficientes para responder às necessidades de financiamento destes dois países, tanto mais que deveria também comprar títulos gregos, portugueses, irlandeses, e talvez de outros países da zona euro...5 Além disso, o FEEF é um instrumento muito pouco prático criado pelos países da zona euro em Maio de 2010 para responder à tormenta em que se encontrava a Grécia. Prova da falta de maleabilidade do FEEF: a decisão de aumentar o seu volume de intervenção e de lhe permitir comprar títulos no mercado secundário ou injectar capital nos bancos falidos, tomada pelos governos europeus pela comissão europeia e pelo BCE a 21 de Julho de 2011, tem de ser ratificada por cada um dos 17 parlamentos da zona euro. Dez semanas depois, o processo de ratificação pelos parlamentos ainda não terminou.
Desde 21 de Julho, a crise acentuou-se mais: as bolsas continuaram muito instáveis com uma forte tendência para a baixa em particular na capitalização dos bancos; o crescimento económico diminuiu por todo o lado, mesmo na Alemanha que até Junho de 2011 apresentava resultados superiores à média europeia; a queda da produção e do consumo na Grécia agravou-se; o desemprego aumenta quase em toda a parte; as receitas fiscais baixam em todo o lado, o que reduz os recursos dos Estados para reembolsar a dívida; a possibilidade de novas falências de instituições financeiras está nas preocupações de todos.
Os governos europeus estão presos na sua própria armadilha
Os governos europeus estão presos na sua própria armadilha; quando foram criados a União Europeia e o Banco Central Europeu, eles decidiram que o BCE e os bancos centrais dos Estados membros da UE não tinham o direito de emprestar directamente aos Estados. Estes devem depender das instituições financeiras privadas (bancos, seguradoras, fundos de pensões...) para se financiar. Se o BCE e os bancos centrais dos Estados membros pudessem pedir empréstimos aos poderes públicos, como acontece com a Reserva Federal dos Estados Unidos, a crise da UE seria atenuada. Sem tomar os Estados Unidos como modelo, longe disso, é preciso assinalar que a Fed comprou ao tesouro dos EUA títulos da dívida pública (Treasury bonds) em mais de 1,7 biliões (milhões de milhões) de dólares, dos quais 900 mil milhões desde a falência do Lehman Brothers em Setembro de 20086.
Outras características da UE reforçam a crise. O orçamento da União é minúsculo e as transferências fiscais a favor das economias mais fracas são muito limitadas. Em comparação, se os Estados Unidos se regessem pelos mesmos constrangimentos e as transferências do orçamento federal norte-americano para os Estados membros fossem tão fracos como na UE, uma dezena de Estados estariam na mesma situação que a Grécia ou Portugal: Virginia, Maryland, Novo Mexico, Florida...
As economias fracas da zona euro que têm um défice comercial em relação aos países mais fortes (Alemanha, França, Holanda, Bélgica, Áustria...) não têm possibilidade de usar a sua taxa de câmbio para aumentar as suas exportações. Pertencer à zona euro transformou-se num colete de forças. Por isso, a eventualidade de uma saída da zona euro faz parte do debate sobre a saída da crise tanto à esquerda como à direita do espectro político.
A crise da zona euro e, para além disso, da UE é patente. Costuma-se dizer que o peixe começa a apodrecer pela cabeça. A crise atravessa todas as instâncias de centralização da UE e da zona euro, os governos dos principais países opõem-se uns aos outros sobre a política a seguir. Nicolas Sarkozy e Angela Merkel não se entendem sobre as medidas a tomar. O governo alemão é favorável a uma redução mais importante do valor dos títulos gregos nos balancetes dos bancos privados que os detêm, enquanto que o governo francês pressiona para que se limite ao corte de 21%, aprovado a 21 de Julho sob proposta do Instituto internacional da finança (IIF), o cartel dos principais bancos credores da Grécia. Em clara oposição ao seu governo, Josef Ackermann, presidente deste cartel e director executivo do Deutsche Bank, afirmou, durante a reunião anual do Banco Mundial e do FMI realizada em Washington em fim de Setembro de 2011, que se opunha a qualquer revisão do acordo de um corte limitado a 21%. Ele martelou: “Se se começa a reabrir esta caixa de Pandora, vai-se perder muito tempo...”7. Há, por conseguinte, um desacordo franco-alemão sobre o assunto a nível governamental8, enquanto que a frente dos banqueiros se mantém unida por agora. A crise da UE e da zona euro repercute-se também directamente nas instituições. Jürgen Stark, administrador alemão do BCE, bateu com a porta a Setembro de 2011 e exprimiu publicamente o seu desacordo com a política seguida pela instituição sob a direcção de Jean-Claude Trichet. Ele denunciou a compra pelo BCE dos títulos gregos, italianos...
Por sua vez, o governo britânico mantém posições autónomas. Muito feliz por não ter entrado na zona euro, ele pode manejar a taxa de câmbio da libra esterlina. Enquanto que a dívida pública da Grã-Bretanha é bem mais elevada que a da Espanha, o governo britânico, graças à libra, dispõe de uma margem de manobra muito mais importante que o governo espanhol. Além disso, o governo britânico opõe-se à maioria dos seus colegas europeus no que respeita à proposta de uma taxa sobre as transacções financeiras. Se ela vier a ser aprovada, é provável que seja aplicada apenas nos Estados membros da zona euro9. A resistência do governo britânico não fica por aí: ele está a considerar seriamente apresentar uma queixa contra o BCE por entrave à livre circulação de capitais! De facto, o BCE quer que as empresas financeiras, pelas quais passam importantes transacções em euros (especialmente nos produtos derivados como os CDS), estejam domiciliadas na zona euro, o que vai contra os interesses do paraíso fiscal que é a City de Londres10.
Do lado dos governos dos países membros da zona euro, alguns como o eslovaco e o finlandês manifestaram dúvidas sobre as decisões de 21 de Julho, o que faz pairar um clima de incerteza quanto à ratificação do acordo pelos seus parlamentos.
Em Julho de 2011, a crise da dívida na zona euro fez uma nova vítima, de que a grande imprensa internacional e os dirigentes da UE falaram muito pouco. Trata-se de Chipre, em que os bancos foram atingidos directamente pela crise grega. Uma razão maior para o silêncio sobre o Chipre, é que o governo deste país escaldado pelas políticas de austeridade impostas à Grécia, à Irlanda e a Portugal tenta evitar a ajuda da troika (comissão europeia, BCE e FMI) e está a negociar com a Rússia um empréstimo de 2 mil milhões de euros. O governo italiano procura também evitar ficar totalmente sob o jugo da troika: as autoridades de Roma tentam que a China aumente as suas compras de títulos italianos.
A experiência de 2007-2008 não levou os governos a impor regras prudenciais estritas. Ao contrário, é preciso tomar medidas para impedir que instituições financeiras, bancos, seguradoras, fundos de pensões e outros hedge fundscontinuem a prejudicar. É necessário processar as autoridades públicas e os donos de empresas responsáveis directos ou cúmplices activos dos desastres bolsistas e bancários. No interesse da esmagadora maioria da população, é urgente expropriar os bancos e pô-los ao serviço do bem comum, nacionalizando-os e pondo-os sob o controlo dos trabalhadores e dos cidadãos. Não só é preciso recusar qualquer indemnização aos grandes accionistas, como convém além disso recuperar no seu património global o custo do saneamento do sistema financeiro. Trata-se igualmente de repudiar as dívidas ilegítimas que os bancos privados reclamam aos poderes públicos. É preciso seguramente adoptar um conjunto de medidas complementares: controlo dos movimentos de capitais, interdição da especulação, proibição das transacções para os paraísos fiscais e judiciários, aplicar uma fiscalidade que tenha como objectivo estabelecer justiça social... No caso da União Europeia, devem ser revogados diferentes tratados, nomeadamente os de Maastricht e de Lisboa. É preciso também modificar radicalmente os estatutos do Banco Central Europeu. Enquanto a crise não atingiu ainda o seu apogeu, estamos muito a tempo de dar uma viragem radial para dar uma saída anti-capitalista às convulsões bancárias e bolsistas.
Artigo de Éric Toussaint11, publicado em cadtm.org, traduzido por Carlos Santos para esquerda.net
1 Certamente que a crise da dívida pública é muito grave e necessita soluções radicais mas é importante insistir na crise dos bancos privados que não resulta da crise da dívida pública dos Estados. O contrário é que, em grande medida, é verdadeiro.
2 O Dexia entrou em falência no início de Outubro de 2008 e foi socorrido pela acção conjunta dos governos francês, luxemburguês e belga. Esta custosa salvação para os Estados e para as autarquias locais deixou intactas a estrutura de direcção e o funcionamento deste banco privatizado no decurso dos anos 90.
3 https://www.lepoint.fr/economie/banque-siemens-a-retire-500-millions-d-euros-de-la-societe-generale-20-09-2011-1375288_28.php
4 Ver no Financial Times o artigo “Central banks walk a monetary tightrope”, 23 de Setembro de 2011, ver também na mesma edição: “Italy: Fight for credibility continues”. O montante global das compras efectuadas pelo BCE entre Maio de 2010, data do início das compras de títulos gregos no mercado secundário, e 12 de Setembro de 2011 eleva-se a 143 mil milhões de euros. Em Maio de 2010 e Março de 2011, o BCE tinha comprado títulos gregos no montante de 66 mil milhões. Depois, não comprou mais títulos, segundo o que diz, até 8 de Agosto de 2011. Ver sobre esta questão o artigo de Éric Toussaint: “La BCE, fidèle serviteur des intérêts privés” https://www.cadtm.org/La-BCE-fidele-serviteur-des
5 Em Setembro de 2011, cerca de metade da dívida pública da zona euro (que totaliza 6,5 biliões - milhões de milhões – de euros) passou para a categoria de alto risco. A novidade é que a dívida pública da Bélgica é, a partir de agora, considerada pelos mercados financeiros como de alto risco. A dívida pública belga representa 5% da dívida pública da zona euro, a da Grécia representa 4%, a de Portugal 2%, Irlanda 1%, Espanha 9% e Itália... 26%! (Ver Martin Wolf, “Fear and loathing in the eurozone”, Financial Times, 28 de Setembro de 2011).
6 Financial Times, “Central banks walk a monetary tightrope”, 23 de Setembro de 2011. Um dos maiores defeitos da política da Fed é ter comprado às instituições financeiras privadas activos tóxicos (ligados ao mercado dos subprime) num montante de 1,25 biliões (milhões de milhões) de dólares e de ter emprestado montantes astronómicos a estas mesmas instituições afim de as salvar, quando o Estado deveria expropriá-las.
7 Ver Financial Times, “IMF/World Bank meetings: Debt talks fail to agree solution”, 26 de Setembro de 2011.
8 Ver Financial Times, “Splits over Greek bail-out”, 28 de Setembro de 2011.
9 O que representa, no entanto, uma massa crítica suficiente. O defeito desta taxa é a sua timidez.
10 Ver Financial Times, 14 de Setembro de 2011.
11Este artigo completa a série “No olho do furacão: a crise da dívida na União Europeia”, publicado em sete partes em cadtm.org. Uma versão unificada da série está igualmente disponível em: https://www.cadtm.org/Dans-l-oeil-du-cyclone-la-crise-de
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