O cumprimento do contrato de serviço público de televisão. A privatização da RTP (III) - Frederico Pinheiro

17-09-2012 01:35

Enquanto o Governo dá como encerrada a discussão em torno da venda da RTP, os trabalhadores saem à rua em protesto e os debates sucedem-se. Publico aqui uma série de textos, de modo a tentar dar o meu contributo para o debate. As referências bibliográficas encontram-se no último texto.

Este é o terceiro texto.

 

Os restantes encontram-se aqui: O capital privado é mais livre do que o público?O contrato de serviço público de televisãoo que deve ser o contrato de serviço públicogarantir ou não o serviço público de televisãoum instrumento demasiado poderoso para os privadossugestões para a melhoria da sustentabilidade financeira

 

III

 

As linhas de política pública definidas no Contrato de Concessão de Serviço Público de Televisão são essencialmente qualitativas, sendo a excepção o estabelecimento de períodos mínimos para a divulgação e cobertura de determinada temática. A avaliação que se pode fazer do cumprimento deste contrato está, por isso, condicionada, sendo em grande parte subjectiva (ERC, 2011). Para procedermos à avaliação do contrato baseamo-nos em duas fontes: a primeira, mais técnica, é a última auditoria realizada pela Entidade Reguladora da Comunicação Social, referente ao ano de 2010; a outra remete para a literatura existente sobre o assunto.

 

A análise feita pelo regulador do sector é positiva no que concerne ao cumprimento das obrigações estipuladas no contrato de concessão. Contudo, são de realçar algumas chamadas de atenção para o incumprimento de determinados parâmetros que, segundo o regulador, não impedem a dita avaliação positiva (ERC, 2011). As falhas no cumprimento do contrato de concessão prendem-se com a escassa programação infanto-juvenil na RTP1, a diminuta duração dos programas culturais e de conhecimento e ainda uma grelha de programação demasiado semelhante à dos operadores privados que transmitem em sinal aberto - SIC e TVI (ERC, 2011).

 

No nosso entendimento, esta última consideração deveria obrigar o Estado e a concessionária a reverem, de facto, a programação e a linha de conteúdos implementadas no principal canal de televisão do serviço público. O crescente mimetismo entre o operador público e os operadores privados são uma falha grave na promoção do pluralismo e na defesa de conteúdos destinados a toda a população, tal como definido no Contrato em análise.

 

São, ainda assim, diversos os autores cujo entendimento sobre o cumprimento do Contrato de Concessão pela RTP é díspar daquele enunciado pelo regulador. Segundo Brandão, esta tendência de transformação dos conteúdos exibidos no serviço público de televisão tem sido contínua desde 1992. O autor realizou uma comparação das grelhas dos três principais canais de televisão nacionais e concluiu que as mesmas são semelhantes. “Com a entrada dos operadores privados de televisão, houve como que um abandono da função social que a televisão pública proporcionava, ou seja, o importante era garantir as condições necessárias para que os operadores privados pudessem operar”, (2002, p. 163).

 

Também Cádima refere ser necessário um cumprimento mais estrito das obrigações de serviço público pela RTP: “A primeira grande conclusão que retiro desta observação de décadas de televisão generalista em Portugal é a seguinte: embora pareça uma missão impossível, importa continuar a lutar por subverter o modelo de prime time telenoveleiro e terceiromundista e também o modelo comercial da RTP1, centrado numa estratégia de fidelização horizontal e vertical do telespectador”, (2005, p.214).

 

O crítico de televisão e também autor de diversa literatura sobre o tema, Eduardo Cintra Torres justifica o facto do contrato estabelecido entre o Estado e a concessionária ser demasiadamente lato e pouco exigente com a ligação entre o poder político e a administração da empresa (2012). O autor não dá credibilidade ao relatório do regulador, nem ao conteúdo do contrato de concessão, por considerar existir um lógica no serviço público de televisão que pretende agradar ao poder político. Assim, a administração consegue manter o seu status, ao mesmo tempo que a esfera política estabelece tempos de antena para divulgar a sua mensagem política.

 

Também Rebelo coloca igualmente em causa o papel do regulador e do operador. “Se, enquanto regulador, o Estado fraquejou, na sua qualidade de operador directo não conseguiu, ainda, destacar-se dos seus concorrentes privados. Recorre a programação semelhante, de gosto fácil. Confunde desporto com futebol, que ocupa longuíssimos tempos de antena sem que o respectivo retorno, em receitas de publicidade, esteja comprovado (em 2008, a transmissão de um jogo custou, em média, mais de 300 mil euros). Incorre, frequentemente, na acusação de partidarismo, tanto no alinhamento noticioso como na organização e na composição dos debates”, (2011, p. 76).

 

A análise destas posições permite-nos considerar que o operador público tem seguido o já trilhado e fácil caminho de se render à lógica de mercado, encarando os telespectadores do serviço público de televisão não como cidadãos – inseridos em determinado meio social, cultural e económico – mas como uma mera audiência. Aumentar os níveis de audiência, apesar de importante, não deve ser o principal objectivo dos canais de televisão públicos em sinal aberto. Esta orientação é seguida principalmente porque o contrato de concessão não define um caminho claro para o primeiro canal, dando a possibilidade à gestão do mesmo de implementar uma grelha de programação comercial, já amplamente difundida pelos canais privados. Como defendem Moragas e Pilar, citados por Fidalgo “tão injustificado seria pretender reduzir a televisão pública a fazer o que não querem fazer as privadas, como limitá-la a fazer só o que já fazem as privadas”, (2003, p. 20).

 

Relativamente ao papel do regulador, arriscamos a avaliá-lo como sendo pouco independente, já que a nomeação dos seus membros decorre de um entendimento entre o partido ou os partidos que governam e o maior partido da oposição. De acordo com a literatura, estas são as forças na sociedade que mais benefício retiram com o actual panorama do concessionário. O facto de o regulador depender directamente do accionista da entidade que deve auditar empobrece a sua verdadeira missão, já por si difícil devido ao facto de ter de auditar um contrato de concessão que estabelece raros compromissos objectivos, consistindo na sua maioria em orientações abstractas e gerais.

 

Julgamos, assim, necessário reflectir em torno da temática do serviço público de televisão e em que deve o mesmo consistir. É responder a esta interrogação que nos propomos no próximo texto. 

 

Frederico Pinheiro, membro da direcção da ATTAC Portugal

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