O que deve ser o serviço público de televisão? A privatização da RTP (IV) - Frederico Pinheiro

17-09-2012 01:41

Enquanto o Governo dá como encerrada a discussão em torno da venda da RTP, os trabalhadores saem à rua em protesto e os debates sucedem-se. Publico aqui uma série de textos, de modo a tentar dar o meu contributo para o debate. As referências bibliográficas.

Este é o quarto texto.

 

Os restantes encontram-se aqui: O capital privado é mais livre do que o público?O contrato de serviço público de televisãoo cumprimento do contrato de serviço público de televisãogarantir ou não o serviço público de televisãoum instrumento demasiado poderoso para os privadossugestões para a melhoria da sustentabilidade financeira

 

IV

 

O serviço público de televisão surgiu em 1926, com a criação da britânica BBC – British Broadcasting Corporation. Uma estação pioneira, que serviu e ainda serve como modelo a nível mundial. Em Portugal, o serviço público de televisão surgiu em 1957 com a criação da RTP, sob a égide do regime ditatorial do Estado Novo. A realidade política e social era substancialmente diferente da actual, começando por uma alteração radical na concepção de Estado. No entanto, a importância da televisão, apesar do aparecimento dos novos media, baseados na internet, mantém-se. Como tal, a reflexão sobre este meio continua actual e determinante para a construção da sociedade e para a forma como a sociedade vê o Mundo. A televisão é o espelho da sociedade, um sujeito constituído pelo contexto, pelas dinâmicas sociais, culturais e políticas. Se é verdade que a televisão é construída por estas variáveis, o mesmo se aplica ao sujeito social, ao cidadão, que vê o Mundo através dos olhos dos media (Debray, 2004).

 

Sobre este assunto Fidalgo refere que “A importância e a disseminação massiva do meio específico que é a televisão, a sua omnipresença, o seu impacto social, a facilidade e o (reduzido ou nulo) custo de recepção, a acessibilidade na sua linguagem som/imagem, conferem-lhe uma responsabilidade muito particular na informação/formação dos cidadãos, na dinamização do espaço público, na afirmação de um cultura e uma identidade específicas, na defesa da pluralidade de ideias e expressões, na construção de uma cidadania mais activa e crítica”, (2003, p.10).

 

Wolton reforça a relevância do papel da televisão na sociedade actual, patente na seguinte ideia: “Elle est à la fois une formidable ouverture sur le monde, le principal instrument d‟information et de divertissement pour la plus grande partie de la population, et probablement le plus égalitaire et le plus démocratique“, (1990, p. 63).

 

Definir o que deve ser o serviço público de televisão é uma vertente estruturante da sociedade e da forma como esta reflecte sobre o que a rodeia. Como compreende e apreende a realidade, efectuando alterações estruturais na cadeia de valores de uma sociedade (Brandão, 2002). O debate em Portugal tem sido efectuado em torno de questões de propriedade do concessionário, que iremos desenvolver no último capítulo desta análise. Pouco se tem reflectido sobre as obrigações de serviço público que são concessionadas. Daí, como referimos, o Contrato de Concessão do Serviço Público de Televisão ser tão lato e vazio. Mas se esta é uma tarefa da maior importância, é igualmente uma reflexão extremamente subjectiva e raramente consensual. Segundo um antigo presidente da BBC, citado por Teodosi e Albani, “a televisão é mais uma arte do que uma ciência. Há que a fazer com gosto e valores e não é precisamente definível”, (2002, p. 43).

 

Apesar das diferenças sobre a concepção de serviço público de televisão, segundo Masuku (2010) o seu objectivo final é o de melhorar a vida dos membros de uma sociedade. Este é o princípio orientador que deve ser tido em conta em todas as reflexões deste género.

 

Uma das limitações que facilmente constatamos ao longo da análise feita até aqui é o facto do serviço público de televisão não estar devidamente explicitado e definido. Falta por isso uma linha orientadora, que sirva de padrão para os restantes operadores de mercado (Fidalgo, 2003). Deve ser o serviço público, através do denominado efeito-estação, a estabelecer elevados parâmetros de pluralidade e diversidade na programação no mercado do audiovisual. É essencial, assim, reverter o processo de mimetismo em relação aos operadores privados. Como refere Cádima, “Imperioso é a questão do retorno ao qualitativo na área da televisão pública, como meio de regular o mercado global da comunicação”, (2011, p. 370). A pluralidade e a diversidade são os factores que definem e estabelecem a qualidade na programação de serviço público televisivo. Estes são os factores que devem preencher este requisito tão abordado na literatura. Mas sendo vazio e subjectivo, o conceito de qualidade não enriquece de forma alguma o debate. “O conceito de qualidade, em relação à TV, cria um bloqueio intelectual aos autores e comentadores das elites cultas, que tendem a confundir qualidade com o (seu) gosto. Daí que não existam definições consensuais do que é qualidade em TV”, (Torres, 2012, p.27).

 

Segundo Richeri, citado por Cádima “a diversidade é a forma mais objectiva de apurarmos a qualidade, diversidade de género, de audiência, económica, de grelha, de recursos e de política” (2011). O serviço público de televisão, financiado por todos, deve ter em consideração as necessidades, interesses e gostos de todos os cidadãos, sendo grave o facto de actualmente seguir uma lógica comercial. Tal orientação tem em conta apenas conteúdos dirigidos a grandes audiências, negligenciando os interesses de diversos estratos da população. E, no serviço público, quando se perde um, perde-se tudo (Brandão, 2002).

 

O financiamento público da programação deve investir em programas que estimulam a procura e não procurarem apenas responder a uma determinada procura, muitas vezes estimada de forma errónea. Só esta visão garante o financiamento de indústrias nascentes ou de conteúdos dirigidos a minorias populacionais (Teodosi e Albani, 2002).

 

A preocupação com as audiências é, de facto, um caminho muito pernicioso, pois os números não nos dizem nada (Letria, 1998). Apenas nos dizem quem vê o quê, e não o que a população quer ver. Podemos aqui fazer a analogia com Keynes (1967) quando este dizia que os agentes de mercado agem de acordo com a imagem que formam daquilo que imaginam que será a actuação dos restantes agentes de mercado, que por sua vez incorrem no mesmo processo. Ou seja, actuam todos com base na tentativa de adivinhar o que é que o outro vai fazer.

 

A tentativa de homogeneização da população, lógica do sector privado de modo a atingir economias de escala e agora prosseguida pelo serviço público de televisão, criou uma profunda crise no serviço público, devido, entre outros factores, ao excessivo paternalismo existente (Fidalgo, 2003). Também Rebelo refere que a função dos media privados tem sido uma “dupla e simultânea função: assegurar a criação e a consequente homogeneização de necessidades e, logo, de consumos, de modo a que se permita o escoamento de novos produtos gerados por complexos maquínicos em laboração permanente; e instituir mecanismos apaziguadores de tensões, que se tornam, em especial no que respeita a populações marginalizadas, instrumentos geradores de conteúdos virtuais, como se fossem fabricas de sonho”, (2011, p. 76).

 

A esta lógica deve o Estado responder com a garantia da universalidade – garantindo que todos os cidadãos, apesar das mudanças tecnológicas, têm acesso ao serviço público de televisão -, da diversidade – tendo em conta os diferentes interesses existentes na sociedade, e da independência – através da criação de mecanismos que diminuam a influência do poder político e governamental na decisão dos conteúdos.

 

Este último factor é difícil de resolver, mas deixamos aqui a sugestão de não fazer coincidir o término dos mandatos da administração da pública, a RTP, com o início do mandato de um novo Governo. Em 35 anos a RTP teve 25 administrações diferentes. Tal facto demonstra bem a influência política sobre a empresa. É essencial garantir igualmente uma maior participação de todos os cidadãos na definição dos conteúdos divulgados pelo operador público. A única forma de se mitigar a influência da esfera política e económica no serviço público de televisão é democratizar as decisões que são tomadas neste sentido. Os cidadãos são os principais financiadores da RTP, ou seja, podem ser equiparados a accionistas da própria empresa / veículo que coloca em prática o serviço público de televisão. A existência de um Provedor do Telespectador e de um Conselho de Opinião são iniciativas importantes, mas os seus pareceres são meramente consultivos, não vinculando nunca a administração a alterar a linha editorial e programática que decide seguir. Consideramos assim importante reforçar o poder destes órgãos e aproximar a população das decisões tomadas na empresa. No fundo, estamos a falar de um serviço que faz intimamente parte da vida dos cidadãos, que todos os dias partilham com a televisão várias horas do seu quotidiano.

 

Para além dos conteúdos emitidos, Cádima (2011) e Godinho (2011) defendem a necessidade de se reflectir sobre as formas de recepção dos conteúdos pelos cidadãos, de modo a compreendermos o que é efectivamente memorizado e percepcionado.

 

Este processo de transformação da “programação contaminada”, segundo Pinto (2011) é urgente, pois com o passar do tempo será cada vez mais difícil alterar os hábitos e gostos da população, por um lado, e estancar a fuga dos cidadãos da televisão, por outro. 

 

Frederico Pinheiro, membro da direcção da ATTAC Portugal

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